Entrevista
concedida ao jornal "Mirante" no dia 23 de Abril de 2013.
A conversa decorreu ao longo de duas horas na casa onde nasceu e
de que é proprietário. O Pombalinho é um porto seguro onde Manuel da Costa Braz
regressa regularmente para gozar da paz campestre. A entrevista é em grande
parte uma soma de episódios da sua vida, farta em acontecimentos relevantes. É
do que viveu que gosta de falar, é nesse campo que se sente mais confortável. E
tem muitas histórias para contar. Ou não tivesse estado entre a nata política e
militar que emergiu da revolução de 25 de Abril de 1974.
Manuel da Costa Braz nasceu em 4 de Novembro de 1934 no
Pombalinho, freguesia do concelho de Santarém que recentemente se mudou para o
município vizinho da Golegã, mas a profissão do pai, ferroviário, determinou
que passasse grande parte da infância e juventude longe da terra natal. Fez a
escola primária na Guia (Pombal) e o ensino secundário em liceus de Leiria,
Figueira da Foz e Coimbra, antes de ingressar no curso geral preparatório da
Escola do Exército quando estava prestes a cumprir 18 anos. Começa aí a sua
vida ligada à instituição militar.
“Tenho muito pouco de Pombalinho. Aqui nasci de facto, aqui vinha
durante as férias, mas não tenho aqui amigos daqueles com quem a gente convive
todos os dias”. A sua residência permanente é em Algés, nos arredores de Lisboa.
Há uns anos o coronel, pai de um casal e avô de três netas,
decidiu abrir uma nova frente de combate e dedicar-se a explorar as
propriedades agrícolas de que é proprietário nos campos do Pombalinho. A missão
não correu da melhor maneira e perdeu “alguns
milhares de contos de economias que tinha feito”. Hoje as terras estão
arrendadas.
O orgulho em ser ribatejano
Costa Braz tem orgulho nas suas raízes ribatejanas (o pai chegou a
ser presidente da Junta do Pombalinho) e é apreciador de touradas, mas prefere
vê-las pela televisão em casa. Confessa-se uma pessoa pouco dada a excessos
emocionais. Não liga a futebol, embora goste que a Académica ganhe. E a seguir
é do Benfica. No que respeita a bairrismos também não é homem de ânimos
exacerbados. Ficou satisfeito com a mudança do Pombalinho para o concelho da
Golegã, “que evoluiu muito de há uns anos a esta parte”, mas diz gostar
de Santarém “embora a ache uma cidade muito parada”. Confessa no entanto
que não está muito a par do que se passa por terras ribatejanas.
E como é que um ribatejano que viveu a maior parte da vida fora vê
a sua região? “Vejo-a com muito orgulho. Gosto muito de ser ribatejano”.
Mas lamenta que o potencial agrícola não esteja aproveitado em toda a sua
dimensão. “Há um esforço da Agrotejo, altamente louvável, para
emparcelamento de terras e é lamentável que ao fim de 30 anos ainda não tenha
sido promovido. As dificuldades encontradas junto dos proprietários têm sido um
grande óbice”. No entanto tem esperança que as coisas mudem: “A força
das circunstâncias e as carências hão-de obrigá-los a pensar duas vezes como é
que hão-de fazer. Nós funcionamos assim!”.
O currículo impressionante de um homem discreto
O seu currículo impressiona pela quantidade e pela qualidade dos
cargos que ocupou. Militar da arma de artilharia, Manuel da Costa Braz, nascido
no Pombalinho a 4 de Novembro de 1934, foi uma figura de topo da vida pública
nacional nos anos seguintes à revolução de 25 de Abril de 1974, tendo integrado
a comissão política do Movimento das Forças Armadas (MFA). Participou
activamente na preparação do 25 de Abril, fazendo parte do grupo que elaborou o
chamado Documento de Cascais e o Programa do Movimento das Forças Armadas.
Como oficial cumpriu três comissões de serviço nas ex-colónias,
duas em Angola e uma na Guiné, durante a guerra colonial. Foi adjunto militar
do primeiro-ministro do 1º Governo Provisório e em Maio e Junho de 1974
integrou a comissão administrativa da RTP.
Foi ministro da Administração Interna nos II e III governos
provisórios e nos I e II governos constitucionais, entre 1976 e 1980, tendo
nestes casos como primeiro-ministro Mário Soares e Maria de Lourdes
Pintassilgo. Do seu caderno de encargos fizeram parte processos complexos como
a organização do recenseamento eleitoral e a preparação das eleições para a
Assembleia Constituinte (1975) e primeiras eleições autárquicas (1976).
Foi também o primeiro Provedor de Justiça do país, nomeado em
Dezembro de 1975, e Alto Comissário Contra a Corrupção entre Dezembro de 1983 e
Maio de 1993. Em 1997, foi nomeado presidente do Conselho Nacional para a
Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência. Presidiu ainda ao
conselho de administração da Hidroeléctrica de Cahora Bassa (Moçambique) em
representação do Estado português, entre Junho de 1993 e Abril de 1999.
Costa Braz é detentor de várias condecorações nacionais como a
Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique (1982) e a Grã-Cruz da Ordem da
Liberdade (1985). A Casa do Ribatejo em Lisboa outorgou-lhe o título de
“Ribatejano Ilustre” e o Estado espanhol atribuiu-lhe a Grã-Cruz da Ordem de
Isabel a Católica (1978).
No que toca à política sempre defendeu a sua independência
partidária “intransigentemente”, garantindo que “sempre assim foi, mesmo quando
estava no Governo”. Considerada uma pessoa moderada, mesmo quando se viviam os
tempos conturbados pós-25 de Abril, integrou nessa altura o chamado “Grupo dos
Nove” que reunia militares da ala moderada.
“Lamento muito que tenha sido necessária a revolução”
Ainda costuma celebrar o 25 de Abril?
"Normalmente celebro em casa. Nunca andei em manifestações.
Sempre fui um tipo discreto, mesmo na altura após o 25 de Abril. Activistas
eram outros, como o meu queridíssimo amigo Vítor Alves."
O que fez nesse dia?
"O principal da minha actividade foi no antes e no depois do
25 de Abril. Devo dizer que não sabia que o golpe ia ser no dia 25, porque não
queria saber. Assim, na eventualidade de detenção não conseguiriam tirar de mim
essa informação."
Foi apanhado de surpresa?
"Surpresa, surpresa não diria. Só não sabia era quando. Eu
estava colocado no Estado-Maior do Exército e quando me telefonaram para casa a
dizer que se ia entrar de prevenção e que tinha de ir para lá juntamente com
outros, calculei que tinha chegado a altura. Quando cheguei lá fui para a
quarta repartição, onde estavam o Franco Charais, o Vítor Alves e o Sanches
Osório a ouvir as notícias na rádio. Depois de resolvidas algumas coisas no
Estado-Maior passei por casa, cumprimentei a família, tomei um banho e fui para
a Pontinha, onde viriam a discutir-se detalhes do programa que entretanto tinha
sido acompanhado na sua elaboração pelos generais Costa Gomes e António de
Spínola. Formou-se a Junta de Salvação Nacional e às tantas da manhã fomos para
a RTP onde o general Spínola leu a proclamação ao país."
A esta distância temporal como vê a revolução?
"Tem várias vertentes pelas quais podemos considerá-la. Em
primeiro lugar, devo dizer que lamento muito que tenha sido necessária a
revolução. Aliás, do ponto de vista técnico foi um golpe de Estado, porque
revolução, em termos de mudanças de estruturas, foi mais depois na sequência do
golpe de Estado. Embora tenha havido uma profunda reformulação da estrutura do
Estado, o que já em si era um bocado revolucionário."
Porque diz lamentar que tenha sido necessária a revolução?
"Por coisas que aconteceram depois e que não deviam ter
acontecido se tivessem havido antes - e lá aparecem os lamentáveis “ses” -
atitudes e procedimentos que se impunham há muito tempo."
Quais?
"Refiro-me fundamentalmente aquilo que se reporta a partir de
1970, em especial com as ex-colónias. As coisas podiam ter sido diferentes se
em devido tempo não houvesse a teimosia salazariana, ou se tivesse sido
acolhido aquilo que o Marcelo Caetano pensou fazer, e não andássemos com a
parvoíce do “orgulhosamente sós”
Foi uma guerra desnecessária?
"A guerra teria que se desencadear, mas podia ter durado
muito menos tempo. Podia ter passado por uma resolução política, como fizeram
os ingleses em relação à Índia, por exemplo. Fui para Angola como voluntário em
1961. Cheguei lá a 5 de Novembro, no dia seguinte ao meu aniversário. Voltei a
Portugal em Julho de 1965 com uma pergunta terrível que renovei no ano
seguinte, quando regressei a Angola, e passados uns anos quando fui para a
Guiné: “O que é que estou aqui a fazer?”.
Nunca conseguiu encontrar resposta para essa pergunta?
"Não. Quer dizer: a resposta era que não devia lá estar. Não
havia um objectivo nacional estabelecido. Aquilo que estava depois no tal
“Documento de Cascais” (nota da redacção: elaborado por militares em 1974,
pouco tempo antes da revolução) era precisamente a definição dos objectivos
nacionais. Isso foi da minha autoria."
Nos tempos seguintes à revolução a situação quase se descontrolou.
Temeu uma guerra civil nessa altura?
"De certo modo sim. O grande obreiro para que ela não se
verificasse foi um homem a quem muita gente não reconheceu devidamente, o
general Costa Gomes. Era um homem extremamente inteligente, que esteve sempre
com o grupo dos moderados. Andámos numa actividade muito intensa nesse período.
Pensámos sempre que quem saltasse primeiro perdia. Havia na parte militar uma
ala esquerdizante e um bocado revolucionária. Do nosso lado, além de outros,
estava o Jaime Neves. Os comandos eram a força mais organizada que tínhamos
disponível. E o Jaime Neves deu-nos algum trabalho porque a certa altura queria
ir por aí acima com os seus comandos."
Por vezes ouve-se dizer que precisávamos de outro 25 de Abril. O
que pensa disso?
"Isso são frases feitas, bombásticas. Mas têm um significado,
porque não estão colhidas as liberdades fundamentais. Houve um aumento de
preocupações de natureza social, na educação, na saúde, etc... E as pessoas não
estão agradadas por razões relevantes, sem dúvida alguma. Mas isto também está
relacionado com a procura de um certo modo de vida para o qual temos de
batalhar mais do que o que temos batalhado."
Temos andado a viver acima das nossas possibilidades, como também
se ouve dizer?
"Essa é outra frase feita, mas é verdade. E somos todos
culpados disso, mas há responsabilidades maiores de quem exerceu funções
governativas. Não se deve gastar mais do que aquilo com que se pode contar. E
houve tempos em que se gastou sem se saber muito bem se havia possibilidade de
recompor esses gastos."
Foi um militar de carreira que de repente se viu como ministro.
Como se sentiu na cadeira do poder?
"Assinei quatro tomadas de posse nessas funções e a minha mão
tremeu mais na quarta do que na primeira. No princípio há sempre uma certa
inconsciência e depois vai-se tendo mais noção da responsabilidade que se
assume. A última vez que tomei posse como ministro da Administração Interna foi
em 1979, com Maria de Lourdes Pintassilgo como primeiro-ministro. Não acho que
tenha inchado com a circunstância de ser ministro. Quem ficou desvanecido foi o
meu pai."
Combate contra a corrupção esbarrou nos tribunais
"Como Alto Comissário Contra a Corrupção (1983-1993), cargo
de que foi o primeiro e único ocupante e que chegou a ser equiparado ao de
ministro, Costa Braz diz que ficou a conhecer a inércia dos tribunais.
Deparou-se com casos que envolviam titulares de cargos políticos. As suas
maiores preocupações eram as autarquias locais, a banca nacionalizada e as
alfândegas. “E tinha boas razões para isso, porque havia muita mescambilha em
qualquer dessas três áreas”. Subornos eram dos casos mais comuns, diz."
“O que eu fazia era procurar vestígios dessas manigâncias. E era
sobre essas provas documentais que havia uma diferença de interpretação e de
aceitação da minha parte e da parte das entidades judiciais. Porque eu tinha
papéis, estava tudo clarinho, mas como o sujeito não era apanhado com a faca na
mão a espetar na barriga do outro... Quando se colocam interrogações desta
natureza não se consegue chegar a lado nenhum”.
Perante esse sentimento de impotência, foi ele que propôs a
extinção desse organismo contra a corrupção, no que foi apoiado pelo então
primeiro-ministro Cavaco Silva. Apesar de considerar que a luta contra a
corrupção está longe de estar ganha e de estar mesmo convencido que “houve um
alargamento desse tipo de actividades”.
Notícias que lhe deixaram traumas
Costa Braz declara-se em “pousio” da actividade pública” desde
1999, quando deixou, com orgulho e obra feita, o cargo de presidente do
conselho de administração da Hidroeléctrica de Cahora Bassa, em Moçambique,
cargo para o qual tinha sido convidado pelo então primeiro-ministro Cavaco
Silva para pôr o complexo a funcionar após os danos causados pela guerra civil.
O que conseguiu em Agosto de 1998. “Esse
foi o primeiro ano, ao fim de catorze, em que Cahora Bassa teve resultados
operacionais positivos. Foi o meu título de glória e acho que não bati com a
cabeça no patamar de Peter”.
Na altura viveu um “problema complicado e traumatizante”. Em Junho
de 1998 o Diário de Notícias publica alguns artigos que considera
“demolidores”. Um dos títulos afirmava que Costa Braz e a família tinham gozado
férias à conta da empresa hidroeléctrica, “o que era mentira”. Pôs um
processo em tribunal, que o desgastou muito, e passados cinco anos o jornalista
e o director do jornal foram condenados a sete meses de prisão, com pena
suspensa, e ao pagamento de uma indemnização de 10 mil contos.
Os arguidos recorreram para o Tribunal da Relação, que concordou
com as penas da primeira instância. “E
com isso se passaram quatro ou cinco anos em que sempre me senti inibido de
aceitar qualquer cargo enquanto a situação não fosse esclarecida. Não queria
levar esse estigma ou interrogações para o sítio onde fosse”.