Cabora Bassa - II
Esse regresso verificou-se cerca de um mês depois, com os
portugueses realmente preocupados com o seu futuro, visto, por um lado, que
tinham percepção das situações complicadas entretanto verificadas e, por outro,
o clima social em Moçambique, que não dava grandes tranquilidades.
A vivência estava difícil: em 1977 estalara a Guerra Civil
– as autoridades moçambicanas não gostavam dessa designação – ; havia fome e
natural insegurança.
Os espíritos da descolonização ainda não estavam acalmados
e os portugueses, muitos ressabiados e temerosos, – com “estatutos” ameaçados e
principalmente esses, – encaravam com dificuldade a “nova ordem” no País, onde
a falta de formação da classe dirigente no enquadramento administrativo e
político era manifesta e agravava a situação, até pela fuga verificada dos
quadros portugueses.
Fui recebido pelos administradores moçambicanos com alguma
reserva, interrogativos na atitude, mas colaborantes de certo modo e à medida
que o tempo corria.
A
Vila do Songo, que foi criada e construída com e para apoio da construção e
exploração da barragem, era também sede de Distrito, estava dotada de muito
razoáveis, mesmo boas condições de vida, incluindo, p ex., posto alfandegário –
de grande importância para o abastecimento de víveres e materiais, fazendo-se a
importação directa --, infraestruturas básicas, – arruamentos, água tratada,
luz e saneamento,- hospital, e habitações para os seus trabalhadores, –- de
várias categorias conforme o seu nível profissional – etc. Os administradores –
5 portugueses e dois moçambicanos, dispunham de quatro moradias no Bairro
Sul – europeias - , e de outras, se
necessário ou do seu gosto, no Bairro Norte – mais de “estilo colonial”– .
Lembrei-me da matriz conclusiva da conversa que tive com o
Eng Nobre da Costa e as acções foram-se
sucedendo, persistentes, afirmativas e significativas, tendo em conta também a
idiossincrasia que conhecia dos
africanos, embora isso não fosse tão directamente
aplicável aos administradores.
Destaco uma ou
outra, não se tratando aqui ou em qualquer outro destes textos, de qualquer
Relatório de Actividades:
. Comecei por ocupar o espaçoso gabinete chamado “do
Presidente” – que, por economia de equipamentos, não tinha ar condicionado (!)
– e aí reunia com os administradores moçambicanos num conjunto de sofás ao fundo do
gabinete, onde o Eng Araújo, imensamente gago mas sem complexos, falava, e o
Eng Casimiro, sem problemas vocais, essencialmente ouvia;
. Visitei os postos de trabalho ao maior pormenor e nos
variados locais em estilo, digamos, de revista militar, com tudo limpo e
arrumado e os responsáveis a descreverem-me as actividades desenvolvidas;
. Na segunda vez que me desloquei ao Songo, fiz-me acompanhar
pela minha Mulher (Teresa) deixando os filhos
ao cuidado dos avós de um e outro lado;
. Depois de adequadas negociações, os administradores
portugueses passaram a ter passaporte diplomático;
. Eu, que sou pelo menos agnóstico, (“do mal o menos”,
como me disse o profundamente católico Dr Ernâni Lopes) fiz restaurar o culto
católico no Songo depois de prolongadas diligências e com a colaboração fácil e
natural do Bispo de Tete.
A igreja, que fazia parte do
património da HCB, estava ocupada como armazém, pelo que se destacou para local
de culto uma residência que estava vaga e foi adaptada para o efeito.
A primeira missa, claro que num domingo, foi precedida de
aviso prévio aos trabalhadores portugueses para que considerassem e procedessem
como se fosse a “repetição e continuação da da semana anterior”. (Podendo
parecer que não, foi um tanto difícil porque se estava a gerar um movimento
revanchista, especialmente de colonos ali acolhidos, que pretendiam levar a
efeito uma procissão. Avisei-os.)
Os lugares de chefia e de alguma
especialização administrativa estavam essencialmente a cargo de portugueses,
muitos deles já residentes em Moçambique e a quem ali foi proporcionado
acolhimento aquando da independência. Essa missa não teve presença de
moçambicanos, que me recorde.
Levei lá a minha mulher, católica praticante, houve os
cumprimentos habituais entre paroquianos de pequenos lugares, finda a qual a
fui buscar, com novos cumprimentos entre circunstantes no adro e votos de bom
almoço e resto de domingo.
No regresso a casa, conforme combinado, trouxe o padre
celebrante, um jovem italiano oficialmente enfermeiro, e duas freiras
espanholas, oficialmente enfermeiras, para ali almoçarmos, com grande gosto da
minha mulher e meu.
A refeição foi muito reconstituinte para o senhor padre,
porque na véspera quase não se tinha alimentado e tinha dormido muito mal, para
mais com um desarranjo gástrico. Não estou a exagerar e afirmo que ele tinha as
suas boas razões.
A “Missão do Songo” estava
oficialmente desactivada mas os seus efectivos, compostos essencialmente por
padres italianos e freiras espanholas, estavam repartidos em acções
assistenciais no Hospital Distrital – apoiado pela
HCB – e nas escolas, parte no âmbito da HCB. O cirurgião do Hospital era o
estimabilíssimo Padre Dr Marquesini, que ali deixou obra.
. Numa outra ocasião, com a Teresa também comigo, e
igualmente a um domingo, foi-me transmitido pelo “Relações Públicas” da Empresa
– um português, “retornado” – que, vim a saber, tinha tido um incidente grave
nos Açores com o Dr Almeida Santos e ali se “refugiara” –que, no final da
manhã, um elevado quadro do Governo – por sinal branco – viria à piscina e que
o Governo do Distrito estava a tratar de questões de segurança que tinha por
pertinentes. O problema é que esses cuidados estavam a implicar a colocação de
soldados armados ao longo das ruas e em árvores, conforme os cânones para
fortes ameaças, que se desconheciam, e estava impedido o acesso à piscina. E
aqui é que batia o ponto. Telefonei ao Sr Governador do Distrito convidando-o a
vir a minha casa e dali irmos com a minha mulher para a piscina, sem aludir à
ordem que, pelos vistos, os militares tinham recebido. Assim aconteceu, fomos
os três para a piscina com o RP, muito tenso e preocupado, incumbido de nos
dizer da chegada do tal senhor e levantar os impedimentos de acesso. Fiz avisar
os administradores moçambicanos, só tendo sido contactado o Eng Araújo, que
compareceu.
Foi chegando uma ou
outra família portuguesa e, quando o visitante anunciado assomou à entrada,
convidei o governador a acompanhar-me e fui recebê-lo, desejar-lhe as boas
vindas. Passados uns tempos de conversa, convidei-o a tomar uns refrescos e
umas tapas que entretanto tinha mandado preparar.
Sublinho aqui, para melhor entendimento da situação, eu
entender que o Governador de Distrito tinha disposto abusivamente sobre acessos
a instalações da empresa e sem conhecimento da Administração.
Havia duas piscinas e na frequência
de uma delas era feita, de facto, uma discriminação social, que não racial,
pois que só poderiam aceder a ela os trabalhadores de nível superior a 11, se
bem recordo. O que englobava todos os trabalhadores portugueses e alguns
moçambicanos, brancos e pretos.
Diga-se que o quadro técnico da
empresa era, na sua quase totalidade, composto por técnicos portugueses, jovens
engenheiros muito qualificados e que adquiriram ali um enorme Know-how, não
muito divulgado, em Corrente Contínua (DC): sua produção, transformação e
transporte a longa distância. Mais tarde, não vieram a ter dificuldades de
emprego no Brasil, Canadá, RAS, EUA, etc, países onde as longas distâncias a
percorrer implicam o uso dessa tecnologia mais adequada para o efeito do que a Corrente Alterna (AC).
Saímos todos muito confortados com o convívio e o pequeno
repasto, até porque ele percebeu claramente o problema que tinha surgido e
gostou de ali estar com grupos familiares portugueses. O que, pelos vistos,
interessava a nós os dois noutras perspectivas que não só as de mero convívio
pessoal. Pela nossa parte, confesso, houve um inevitável respirar de contento e
de alívio de confusões às vezes de difícil resolução.
. Concluí também pela manifesta e profunda conveniência da
presença permanente no Songo da representação portuguesa no CA.
Em Julho de 1979, estando também no Songo, foram ali
recebidos, por duas vezes, faxes em
que me era transmitido pelo Eng António Martins o convite da Eng.ª Maria de
Lurdes Pintasilgo para integrar o V GConstitucional, que estava em formação.
Declinei os convites.
Os faxes entre o Songo e Lisboa e
vice-versa demoravam na prática, um dia cada: de Lisboa iam para o escritório
da empresa em Joanesburgo e daí, em viatura, a fita era transportada para a
Subestação Apollo,– a uma dúzia de quilómetros – onde era metida num terminal e
enviada pela linha de transmissão de energia para o Songo. Na prática, também
não havia telefone útil para Lisboa!
Ao terceiro dia (há sempre um terceiro dia …) o fax recebido terminava o texto do
convite com um esclarecedor “Imprescindível que aceites. Vitor Alves”. Vitor
Alves, que seguramente estaria a acompanhar as “águas que corriam debaixo da
pontes” e das quais eu não sabia literalmente nada. Só que eramos muito amigos,
ele conhecia-me bem e ajuizaria convenientemente da minha adequação aos
afazeres.
E foi assim que passados dois dias, com a chegada do meu
substituto, me pus a caminho de regresso, chegando no cedo da manhã de 31, o Dr
José Manuel Andrade estava à minha espera para me encontrar com a Maria de
Lurdes no Forte de Catalazete e tomar posse no dia seguinte como
Ministro-adjunto para a Administração Interna. Era o quarto Governo em que
participava e tinha pela minha frente, como tarefa prioritária, – mas que não
foi exclusiva ao contrário de algumas vontades, – a realização pela primeira
vez de duas eleições em curto espaço de tempo: a 2ª eleição legislativa para a
AR e as também 2ªs Autárquicas, havendo que definir se simultâneas ou não e
qual das duas a primeira, coisa que foi resolvida a contento embora com
dificuldades esperáveis.
Engraçada foi a posição geral dos partidos que, face a
essas opções, me mostravam pessoalmente os seus agastamentos, mesmo
dificuldades práticas e, cá fora, anunciavam uma plena disponibilidade e
capacidade e natural confiança: quer dizer que toda a responsabilidade das
decisões me caíu sobre os ombros, mas não deixou grande mossa.
Tenho deste Governo uma ideia muito
especial: pela sua Chefe e a generalidade dos seus componentes, foi um Governo
de missão, com um “não sei quê” de idealismo da nobreza das tarefas. Gente
estimabilíssima e dedicada, manifestamente sem interesses próprios que não os
da “causa” em que colaboravam. E a Maria de Lurdes continua a esperar que alguns
ilustres personagens, ainda na vida pública, lhe peçam desculpa pelo que lhe
fizeram e seja oficial e formalmente recordada como merece.
Regressei à HCB logo no início do ano seguinte, é claro,
para dar continuidade ao que vinha fazendo. E foi a minha vez de assegurar a
presença, permanente, de um administrador português no Songo, em regime de
rotatividade, com uma lista de acções a desenvolver (LA), por delegação, no
âmbito de qualquer dos pelouros, dando da evolução notícia regular. O PCA
deslocar-se-ia lá quando necessário ou, como no caso então presente, quando lhe
fosse possível…
Entretanto procurava a aceitação local, digamos assim, do
Eng António Martins, fundador da empresa como tal e autor da sua excelente
estrutura orgânica. Corriam as coisas bastante bem quando, no âmbito da LA,
recebo indicação para um qualquer procedimento com o qual discordava
profundamente, e isso era sabido, para além de ser mais uma manifestação de
exuberância de vontade e de ausência de ajustamento às idiossincrasias locais.
Informei de que nesse assunto terminava a minha intervenção. E desisti de
prosseguir as diligências que vinha fazendo.
Foi natural o surgimento de dificuldades no meu
relacionamento com o PCA, o que me foi muito desconfortável e penoso.
As actividades internas prosseguiam a bom ritmo e ia-se
caminhando para a prontidão do empreendimento, que aliás tardava.
Mas aquelas paragens tinham os seus problemas, que
incluíam o plasmodium falciparum que
os mosquitos anopheles, abundantes no
vale do Zambeze, depositavam com pouca gentileza na nossa corrente sanguínea.
Nos meus quase sete anos de África, dos quais um ano a
beber a água “que passava ali ao pé” – embora com a pastilha de cloro que
matava os bichos mas desancava o estômago –, e os outros a água de
abastecimento público com duvidoso tratamento, não me acontecera tal coisa.
Foi um ataque violento de malária, a febre aproximou-se
dos 41 e as reacções físicas foram as normais nessa situação. A preocupação da
minha Mulher era grande, quanto à eventualidade de ser necessária uma
evacuação. Valeu a natural experiência do pessoal hospitalar e a dedicação e
risco de uma freira/enfermeira que me tratava às escondidas em casa porque, de
acordo com as regras oficiais, eu devia estar no hospital e ela estava a
desenvolver uma actividade para a qual não estava autorizada. Ambos estávamos
em infracção.
Em certo dia recebi a indicação de que deveria comparecer
no Estado Maior do Exército para tratar de um assunto do meu interesse. Assim
fiz. O Brig Câmara Stone, meu conhecido
de Vendas Novas e Director da Arma de Artilharia, transmitiu-me a dificuldade
de me incluir na lista para promoção a Coronel dado que não tinha um ano de
comando efectivo. Pela sua parte e, em especial pelo Chefe do Estado Maior do
Exército, General Pedro Cardoso, que tinha capacidade supletiva, não terá sido
visto modo de superação do problema. Entretanto, e por duas vezes, embora não
preterido, fui ultrapassado na escala de antiguidades.
E vim a fazer o meu pedido de passagem à situação de
reserva em termos um tanto acrimoniosos.
Houve um natural evoluir da situação conducente à
realização da referida Assembleia Geral, no Maputo, mas, por entendimento entre
os dois governos, para a ser aclarada a questão gestionária da empresa
com a nomeação de um novo PCA. Não aceitei delegações de outras entidades que
não a por mim representada no CA.
O Dr Mário Adegas, Secretário de Estado do Tesouro do VII
G Constitucional (9 Jan 81 a 4 Set 81) convidou-me para essa função. Declinei o
convite, que em boa verdade era uma gentileza sendo esperável a resposta. Mais
do que isso: entendi que devia sair da Empresa. Por imperativo, sei lá,
deontológico, o que se queira chamar, mas foi-me muito dolorosa essa saída dado
que tinha criado uma afeição grande àquele projecto. Que a merecia.
Entretanto processou-se a minha promoção a coronel pelo Conselho da Revolução (CR), usando naturalmente das suas competências normais e dela vim a ter
conhecimento apenas no regresso de mais uma deslocação
Moçambique. O PR disse-me que tinha havido unanimidade de
assentimentos, o que naturalmente me regozijou e pacificou um bocado.
Saí da HCB no dia
31 de Julho de 1981, após uns três meses com o novo PCA (Eng. Castro Fontes),
para iniciar funções na Ilídio Monteiro Construções, como noutro lado conto.
Não sem ter renovado o meu pedido
formal de passagem à situação de reserva com muito poucas linhas usadas das 35
possíveis do requerimento ao Chefe de Estado Maior do Exército, então o General
Garcia dos Santos, que convidei para um almoço na varanda do Hotel Eduardo VII
em que lhe pedi empenhadamente o deferimento. E assim foi. No dia 1 de Setembro
seguinte efectivou-se essa mudança drástica da minha vida. Felizmente.
E reavivei a minha ideia de que as Instituições condicionam
os homens mas são eles que as caracterizam e têm nisso uma grande
responsabilidade.
Passaram-se anos e o Eng António Martins, na altura
Presidente da Companhia Industrial de Portugal e Colónias (NACIONAL a partir de
1986), convidou-me para um jantar na Empresa aquando da inauguração das obras
que tinha mandado fazer no Convento do Beato para a sua reabilitação, corrigindo
atropelos monumentais à sua arquitectura e utilizações de áreas; convidou-me
também a assinar o livro de honra que me apresentou com o pedido de não aproveitar
a ocasião para retaliar das atitudes que tinha tido comigo. Aceitei o pedido.
Era a demonstração de tínhamos consideração um pelo outro e esta atitude era
muito excepcional da sua parte.
Voltámos a ver-nos com agrado em pelo menos três ocasiões
posteriores.
A roda da vida continuaria a girar por caminhos
completamente insuspeitados para mim.
Talvez volte a eles.
Manuel da Costa Braz
In m/ pasta Para Memória Futura
Editado em Nov 2018