Cabora Bassa I


Cabora Bassa  -  I


Corria o ano de 1978. Terminadas em 23 de Janeiro as minhas funções de Ministro da Administração Interna do I Governo Constitucional eu era, desde Fevereiro, o Segundo Comandante da Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, conforme desejava, na única Unidade em que servi no Continente.
Encontrei a EPA num estado deplorável de instalações e comportamentos: casernas, ISanitárias, janelas, telhados com ervas, paredes exteriores, cabelos ainda compridos, procedimentos fora das regras estabelecidas etc. Na sala de oficiais, por exemplo e para exemplo, os maples forrados a napa que tinham sido comprados esforçadamente pelo Comandante Campos de Andrada e que eu ali deixara em 1966, já usados, quando fui pela segunda vez para Angola, estavam nessa altura com as molas desesperadamente à mostra e só utilizáveis com uma almofada de permeio… Encarando isso com raiva e, com meios próprios que foram procurados e outros angariados, deixei bem melhor herança ao meu substituto e “afilhado artilheiro” Gabriel Espírito Santo, que por sua vez a alargou ainda mais, conforme vim a constatar e me congratulei. E não se pense que se trata de pôr defeitos no passado para realçar o futuro…
Uma breve adenda: a sala de visitas do Comando foi então remodelada e reequipada por uma decoradora que lhe deu uma configuração um bocado oposta à anterior – no que eu tinha a minha responsabilidade mas a decoração não é o meu forte -, o que levou os bem-dispostos oficiais da altura, inspirados numa novela que corria na RTP, a batizarem-na de “Sala dos Acácios”. Tinham um bocado de razão.
Francamente, não me sentia no melhor dos meus mundos, como noutra ocasião referi. E sentia a curiosidade, às vezes malsã, de alguns que queriam ver como reagiria à trivialidade dos lúmenes do sol e decibéis dos clarins na parada alguém que geriu as funções e responsabilidades que já tinha tido. Mas guardava para mim esse desconforto.
 Era Tenente Coronel e o exercício de um ano de comando era condição para promoção a Coronel.
Numa 4ª feira algures em Outubro recebi um telefonema do Gabinete do Primeiro Ministro convidando-me a ir lá, que o Sr PM precisava de falar comigo. Era o Eng Nobre da Costa, PM do III GConstitucional (29AGO78-22NOV78). Pedi o adiamento para o sábado seguinte por razões óbvias de serviço.
Tínhamos sido colegas no I GConstitucional- onde ele foi Ministro da Indústria e Tecnologia- e criámos um muito bom relacionamento funcional e pessoal.
Na conversa que tivemos disse-me das dificuldades com que se confrontava a administração portuguesa da Hidroelétrica de Cabora Bassa (HCB), em Moçambique. Por exemplo, ao Presidente da empresa, Eng António Martins, a Embaixada moçambicana, protelando indefinidamente a concessão, na prática não concedia o visto de entrada que absurdamente era exigido aos membros portugueses da administração da empresa colocando-os na situação geral – no que havia retribuição, evidentemente –, o que o inibia do exercício integral das suas funções e assumpção plena das suas responsabilidades. E a construção estava a terminar.
A Sede da Empresa, de direito moçambicano, era no Songo.
Entre outras informações e em curto espaço de tempo, deu-me um apanhado breve do que era a Empresa e do envolvimento português naquele empreendimento. Em resumo, trouxe três ideias essenciais: a de que era uma grande empresa; que a sua gestão estava a ser afectada por maus relacionamentos pessoais; que era um assunto muito relevante nas relações institucionais entre Portugal e Moçambique, independente havia apenas três anos (25 de Junho de 1975). Juntei-lhe duas outras: seria significativo que não houvesse impedimento dos administradores portugueses para o cumprimento das suas funções; deveria ser devidamente considerado o peso da participação que eles representavam no capital social. Em termos politicamente incorrectos dir-se-ia que era necessário repor a “soberania” portuguesa prioritária na vida da empresa. E, nos relacionamentos, havia também que incluir, obviamente, aqueles que, de certo modo decisivos, respeitavam ao “cliente”, a ESKOM, a grande empresa de energia da África do Sul.
No seu conjunto, entidades portuguesas detinham 82% do Capital Social.
Confesso que ponderei, em família, o tal desconforto que sentia mais a previsível exigência de estadias prolongadas em Moçambique com o aliciante da tarefa.
Aceitei o convite três dias depois, quando se iniciaram as diligências formais que a nomeação importava, nomeadamente a autorização das autoridades militares, despacho de nomeação e sua publicação.

A acta da sessão refere que a autorização foi sujeita a votação no CR.
O Vítor Alves telefonou-me no dia seguinte, um sábado, estava eu no Pombalinho na reunião familiar semanal a que estava reduzido na altura, dando a notícia da aprovação, sem mais detalhes. Tive-a como uma prenda do meu aniversário que se verificava nesse dia e ele desconhecia…
Quando tive conhecimento do pormenor não fiz qualquer pergunta ao Vítor ou a outro qualquer amigo presente na reunião, dado o carácter sigiloso que a questão teria: quem votou contra ou se absteve? Seria uma curiosidade sobre a qual não tenho certezas,- de que não precisei nem preciso para nada- apenas fortes suposições,- que não utilizei objectivamente noutros aspectos mas foram tidas em conta em situações e decisões posteriores.
Era uma “comissão civil” e a duração do seu exercício contava, adequadamente, como “tempo de serviço”; o despacho de nomeação, de que o seu subscritor, o PR, Ramalho Eanes me mandou naturalmente cópia, constava que iria “em comissão especial para missão de interesse público”. Não deixo de ter ainda esse sentimento, de facto e sem presunção.
No início de Janeiro de 1979 apresentei-me no Escritório de Representação da  HCB, então na Rua do Funchal, em Lisboa, - assim chamado por conveniência terminológica e política, já que a HCB , como empresa de direito moçambicano que era, tinha a sua sede natural no Songo, Moçambique- como atrás disse.

Ali vim a encontrar o irrequieto jovem licenciado em direito Marcelo Rebelo de Sousa, que dava assistência jurídica à empresa.

O PCA da HCB (Engº António Martins), na sua “luta”, muito pessoalizada no meu entender, diligenciava por uma reunião da Assembleia Geral que haveria de ter lugar no Songo, em que eu também participaria e levantava-se a questão dos vistos.
O Eng António Martins, na sua última vez que esteve no Songo, avisado, teve de sair à pressa, alta madrugada, a caminho de Blantyre. Passadas duas horas uma patrulha militar batia à porta da residência “com torvo intuito”…
 A Embaixada de Moçambique não atava nem desatava e passou a haver solicitações via diplomática, através da nossa embaixada em Maputo (desde 13 de Março de 1976, antes Lourenço Marques) e também do escritório que a empresa ali tinha. De informação em informação, de talvez para não e de não para talvez, com a indicação, dita da embaixada, de que os nossos vistos estariam à nossa espera no Songo, aí vou eu em Fevereiro, via Blantyre (Malawi), onde a HCB tinha também um escritório, com as credenciais e mandatos na pasta. Instalei-me num hotel onde passei dia após dia a conhecer das imprecisões com que a questão dos vistos se confrontava, entendendo no entanto que não devia sair dali enquanto do Songo não me fosse dito que eles lá estavam. Já ia no quarto ou quinto dia de hesitações, disposto a regressar a Lisboa conforme para cá comuniquei, quando recebi a indicação de que os vistos finalmente estariam à espera no Songo  e que o Dr Miguel Galvão Teles, o ilustre advogado, vinha a caminho para participar também na reunião, como previsto.
O Dr Miguel Galvão Teles e o Dr Jorge Sampaio, foram os autores materiais dos Estatutos da HCB, uma obra-prima jurídica e previsional, atenta a época e as condições em que foram elaborados (1975). Foram dadas à Empresa condições, dir-se-ia, de empresa majestática, um tanto a exemplo da Diamang ou do Gabinete da Área de Sines, esta última de que António Martins tinha a experiência. O contrato de fornecimento com a Eskom- empresa de electricidade da República da África do Sul – teve no entanto uma perfeita feição monopsónia, que era aliás inevitável dadas as condições iniciais da decisão da construção - negociações com a RAS- que viria a inquinar dramaticamente o futuro, com o qual vim a estar relacionado.
Ao Miguel, ainda lhe fui mostrar uma curiosidade que me divertiu nos dias ali passados: num supermercado nas imediações do hotel e da pertença, ao que era dito, da mulher do Presidente Hastings Banda, havia à noite, depois de fechado, uma agitação enorme e gracioso bailado de grandes e anafadas ratazanas que assaltavam as prateleiras e se recolhiam apressadamente na cave quando assustadas com uma pancada que se desse nos vidros das montras, para depois voltar. Tinham medo mas não tinham vergonha! E eram interessantes as suas deslocações afanosas.
O certo é que, enfim, lá veio o dia em que embarcámos no avião da empresa  a caminho do Songo.




Já agora: o aeroporto do Songo foi construído no conjunto de edificações associadas á barragem e sua exploração, tinha estatuto de aeroporto internacional, estava na rede nacional de aeroportos e a empresa dispunha de um avião que acorria a necessidades de apoio aos seus trabalhadores, nomeadamente no campo da saúde e ajudava a quebrar a sensação de isolamento que não era difícil de surgir. Tinha segurança, serviços alfandegários e de fronteira.
Também é certo que chegámos ao aeroporto do Songo e não havia lá qualquer visto.
Mais do que isso: havia a interdição da nossa deslocação para o Centro Urbano, o que significava que não podíamos sair dali.
Toda a gente muito alvoroçada e nós bastante incomodados.
Procurados esclarecimentos junto dos administradores moçambicanos residentes – havia dois, que vim naturalmente a conhecer mais tarde, Engs Araújo, de origem indiana e Casimiro, branco e entusiasta do “País Novo” – mas nada resultou. E nem os vimos.
Com grande solidariedade, os muito preocupados trabalhadores portugueses – connosco e com eles próprios - procuraram suavizar as nossas mágoas e organizaram um opíparo jantar à base de marisco – que em Moçambique é barato (!) e era melhor do que a costumada carne assada -, bastante concorrido, dispondo-se as vitualhas pelo chão, em estilo árabe, ou pelos balcões do aeroporto. Um convívio que foi muito agradável.
Houve ordem de recolher à meia-noite pelo que se deu a debandada e, a partir daí, eu e o Miguel enrolámo-nos nos cobertores que os nossos concidadãos amavelmente tinham também trazido, mas com a companhia atenta de dois soldados moçambicanos, um tanto acanhados mas devidamente armados, que oficialmente nos guardavam. Era a nossa detenção não declarada!
O meu sono foi prejudicado por dois factores relevantes: os mosquitos, que também atacavam o Miguel, e ele próprio, que procurava insistentemente ver a doutrinação, convicções e militância dos militares, que a certa altura já estavam um pouco inquietos. E por mais que eu insistisse para que viesse dormir, nada!
Um tanto desiludido lá adormeceu pela três da manhã para, por volta das seis, nos prepararmos para o embarque de regresso a Blantyre e Lisboa.
O que se verificou, e chegámos à “base” com “a consciência do dever cumprido” e eu com a excelente “capital” do meu “sacrifício” ou pelo menos grande incomodidade que vim a utilizar mais tarde, quando do meu regresso a Moçambique.
                            
Manuel da Costa Braz
In m/ pasta Para Memoria Futura
Editado em Nov 2018