Esta "carta" foi publicada no Boletim da Associação
25 de Abril nº100 que além de comemorativo pelo seu número redondo foi
essencialmente dedicado a homenagear o Cor Vitor Alves, falecido em 8 de
Janeiro de 2011 no Hospital Militar Principal. Por ironia premunitória, a
edição do Boletim refere-se ao período de Out-Dez 2010 e a dilação havida na
edição permitiu juntar dois eventos relevantes: o número redondo da iniciativa
editorial da A25A e a infausta ocorrência do desaparecimento de Vitor
Alves. M. Costa Braz
Meu
Caro Vítor
Confesso-te
que tenho uma grande dificuldade em escrever-te.
Tenho
andado de dia para dia para o fazer e a inércia tem vencido.
Entretanto
nota que não o faço por qualquer imperativo circunstancial mas sim porque o
afastamento leva a relembrar coisas vividas em comum, sejam elas factos,
carácter, temperamento, idiossincrasias, o que for. E passá-las a escrito é
interessante, até para reviver. Compreendes bem isso tu que, que eu saiba, não
escreveste coisa nenhuma para memória futura, colaborando no entanto e
felizmente com outros que o faziam para utilidade pública, como creio bem que
virá a verificar-se. Não descurarias o interesse público.
É
por isso que recordo como nos conhecemos em Setembro de 1971: quando vim
juntar-me ao grupo a que tu pertencias e que se propunha fazer o Curso
Complementar de Estado-Maior no IAEM. Coisa um bocado complicada para mim,
porque na relatividade já seria um pouco vetusto para alguns colegas nossos. E
por força de ser major e o mais antigo, era o chefe de curso. Delicado encargo.
A
naturalidade da chefia daquele grupo cabia-te, e eu era o intruso que depressa
deixou de o ser pela empatia imediata que soubemos criar e desenvolver.
Compreendeste e ajudaste nos problemas que eu trazia comigo pelas contingências
da vida e perversidade de alguns homens.
A
tua vivacidade de inteligência e temperamento torneavam momentos mais
complexos, como o faziam também quando, em temas tácticos, se analisavam
acaloradamente as dificuldades do ataque quer pela esquerda, quer pelo centro,
quer pela direita, e tu vinhas com a solução do envolvimento
vertical helitransportado .
-Mas
não há helis !
-Pedem-se
de reforço ao Corpo de Exército!
Dificuldades
? Hão-de superar-se. O que é preciso é imaginação !
Viemos
a viver vitórias e frustrações ao longo do curso: como era preciso que nas
obrigatórias orais dos exames finais houvesse pelo menos um espectador na sala,
pediste-me que te acompanhasse. Assim fiz. E retribuíste.
Quando,
com sugestão do Firmino Miguel, coloquei à ”turma” a questão do Congresso dos
Combatentes que se anunciava - temática inusitada na ambiência clássica e
tradicional daquela Escola - foste dos mais entusiastas e desassombrados na
contestação que transmiti ao Director de Curso.
Findo
o cansaço e as férias de 1973, fomos para o EME, tu na 4ª Rep com o Sanches
Osório e eu na 3ª com o Rebelo Gonçalves.
Disseste-me
em Dezembro, em segredo, da tua simpatia pela movimentação que se verificava
entre os capitães.
O
Osório e tu levaram-me a juntar-me ao grupo para mim agora mais visível em 5 de
Fevereiro seguinte, onde te vi, voluntariosamente, na mesa da Comissão
Coordenadora do que já era um Movimento de dimensão manifestamente alargada.
Ponderada
e silenciosamente, quase sem se dar por isso, dirigias a reunião, de que aliás
saí com uma incumbência. Que cumpri.
E
aceleraste a vida de dobadoira que já vinhas adoptando.
Mas
entretanto e cumulativamente, numa perspectiva de enorme discernimento que
poucas vezes é referido e para mim constituiu um contributo inestimável para o
triunfo, cirandaste com afabilidade, cortesia e convincentemente pelos outros
Ramos procurando a sua adesão ou a neutralidade. E, com alguns colaboradores,
conseguiste. E digo assim, porque a tarefa principal foi tua e da tua maneira
de ser e estar.
Nas
actividades preparatórias logo se manifestaram resultados na elaboração do
“Documento de Cascais”, onde ajudaste sabiamente a ultrapassar as dificuldades
e hesitações que surgiram na reunião que ali teve lugar em 5 de Março. E que
foi, chamemos-lhe assim, o momento chave e decisivo para o que se processaria a
seguir. Constituíste o que poderá chamar-se de “núcleo político”, com centro no
Ernesto e de que fiz parte e que viria a pensar, ponderar e produzir o Programa
do MFA, onde aquele teu trabalho de procura de convergências voltou a ter
relevante utilização e bons resultados não só no imediato como no futuro.
Entretanto
o Tejo corria célere debaixo da ponte, com algumas precipitações. O tempo urgia.
Paralelamente
corria o excelente planeamento operacional, como por mim vim a verificar.
A
escada que conduzia ao bar do EME para o café da tarde era local de troca de
rápidas e sigilosas opiniões sobre as evoluções que entretanto se verificavam,
o lugar de destino para os então Chefes da Nação ou o nível dos componentes
futura da Junta de Salvação Nacional.
Era
o teu bom senso a imperar sobre ímpetos entusiásticos e o conhecimento e
prudente respeito pelas idiossincrasias individuais e do grupo profissional a
que pertencíamos.
Bem
cedo na manhã de 25 de Abril fui ao teu encontro na 4ª Rep onde, com o Charais
e o Zé Osório, sorviam sofregamente as notícias que as rádios iam transmitindo.
Já
noite dentro, findas as minhas tarefas, fui encontrar-te na Pontinha, onde
afinal não cheguei a render-te como tínhamos combinado, porque ali ficaste
também nas negociações do Programa com Spínola e Costa Gomes e de onde se saiu
a caminho da RTP com os membros da Junta.
Poucos sabem que
ali tiveste de ler para os sôfregos e ansiosos jornalistas as partes essenciais
e consensualizadas do Programa, por carência de tempo e de meios de cópia
rápida para um bom aspecto gráfico.
O País ficou
então a conhecer-te.
Mas a tua
inquietação e movimento não pararam, com ou sem funções governativas.
Lá veio o “Verão
Quente” como foi definitivamente baptizado e fomos, os dois, “refugiar-nos” no
MNE com a pomposa designação de “embaixadores dos Serviços Externos” -
embaixadores itinerantes - .
Ambos nos
desincumbimos de tarefas no exterior a partir do nosso gabinete lá ao fundo do corredor,
eu no Uganda e em Moçambique e tu em Timor e algures na Europa, mas tu, com
vantagem não deixaste de exercer a tua actividade, afinal e plenamente no uso
das qualidades requeridas para a função, no interior, em todos os
desenvolvimentos em muitos dos quais participei em ligação contigo e que
culminaram em 25 de Novembro, com o “Documento dos Nove” de permeio mais as
reuniões no sótão do Gomes Mota e os almoços no primeiro andar do Restaurante O
Chocalho, em Santos, com admissão exclusiva e direito de acesso que foi reservado para nós.
De novo o bom
senso, equilíbrio, inteligência e ponderação postos à prova com êxito.
Espaçaram-se
depois os contactos, que os afazeres diferenciados também de certo modo
impuseram, mas uma regra saudável estabelecemos por essa altura : a de
almoçarmos os dois pelo menos nos dias 25 de Abril, após as cerimónias
comemorativas na AR, depois do que eu te acompanhava à Avenida da Liberdade que
ias descer num grupo numeroso e plural. Para além de outras oportunidades que
surgissem.
Assim fizemos
até há dois anos.
Coisa que
estávamos a reavivar agora como ocasiões que aproveitávamos para saber de nós e
para rever a matéria passada e a previsível para o futuro, que sempre te preocupou.
Normalmente
parco em palavras, gostavas mais de ouvir.
Acompanhavas de
perto o evoluir da vida política e as nossas ocupações, como disse, deixaram de ter alguns
pontos de sobreposição, no tempo ou na matéria.
Foi assim que,
em 1979, estando eu no Songo, em Moçambique, isolado do mundo e das notícias ou
quase, dadas as enormes dificuldades de comunicações, recebi, bastante
espaçados nas horas dois faxes convidando-me para integrar o V Governo
Constitucional. Eu não fazia ideia do que por cá ia entretanto acontecendo.
Declinei os convites até que recebi um terceiro fax que continha um quase
lacónico “Imprescindível que aceites” assinado “Vítor Alves”.
Comunicação
suficiente.
O conceito era
teu ou vosso, como quiseres. A imodéstia da citação é minha.
A fonte da
informação relevante para a decisão era fidedigna e a confiança era total e
mais que uma vez demonstradamente merecida.
E pus-me a caminho
de Lisboa onde cheguei uns dois dias depois ao romper da alva. Esperava-me no
aeroporto o carro com um amigo informado sobre as águas corridas para um
briefing sintético e, passado pouco tempo, estava no forte de Catalazete a
falar com a Maria de Lurdes Pintasilgo ocupada na azáfama de organizar a sua
equipa governativa e manifestou o seu agrado e mesmo alívio, se me é permitido
assim dizer.
Sei que tiveste
gostos e desagrados. Como toda a gente, é certo. Não porque os confessasses,
mas porque te conhecia suficientemente bem.
Sei que gostaste
do encargo que recebeste de, durante talvez dez anos, presidir à Comissão
Nacional para as Comemorações do dia de Portugal, de Camões e das Comunidades
Portuguesas.
É que aí
juntavas o útil ao agradável. Agradável, porque declaradamente gostavas de
viajar. Útil, muito útil mesmo, porque te empenhavas devotadamente em explicar
e esclarecer a nossa diáspora sobre o que fora e era o nosso Abril e os
horizontes esperados para um novo seu País.
Sei que tiveste
pena que o PRD, que ajudaste a criar, não tivesse conseguido uma coisa que
ambicionavas: ser deputado europeu.
Nunca te o
perguntei porque não precisava. Também não te vi ou ouvi manifestações de
desgosto ou de recriminação. Muito menos queixumes. Mas podes confessar agora,
despindo a veste folgazã que por vezes utilizavas e eu te convidava a tirar
para seres mais real. Ao que tu acedias.
Lamentei que
assim tivesse acontecido, porque achava que a função se te ajustava bem e
farias um bom lugar no interesse do País.
Amigo do teu
amigo, recordo duas situações, para não referir uma terceira que me disse
respeito:
-Como choravas
quando ambos e outros quatro amigos levávamos o Ernesto para a sua última
viagem;
-Como
acompanhaste dedicadamente o Mário de Aguiar, ao ponto de me agradeceres o
simples facto de eu o ter ido visitar ao Hospital, ultrapassando uma estúpida
tensão de relações que afinal custava a ambos.
Em certa altura
resolveste recolher-te, sem perder o contacto com o mundo e as suas
circunstâncias.
Dedicaste-te
mais à família e descendência e às causas cívicas, sendo um motor e
impulsionador da criação da Civitas, composta por pessoas das mais variadas
origens e convicções como tu gostavas e a causa exigia, altamente meritória no
campo social, da cultura e dos direitos humanos em que comungavam e a que
presidiste.
Amigo dedicado e
fiel, tiveste-os também, asseguro-te. Tal como detractores, também te asseguro,
mas não sei se inimigos. Despeitos em gente menor que a eles não resistiam sim,
e também deles sofreste os resultados. Mas pareceu-me que a tua caravana sempre
passou, soberanamente indiferente aos latidos, como devia. Assim o soubeste
querer, assim o soubeste fazer.
E coisa
interessante e rara : nunca te vi como maledicente nem maleficente, não sendo
tu, manifestamente, santo ou candidato a beatificação. Mais relevante ainda
porque a tua personalidade era forte e assim nos ficou na memória.
De novidades que
para ti efectivamente o sejam, nada de especial que não tenhas já e
lamentavelmente conhecido noutras oportunidades.
Talvez dois
pequenos episódios:
-Um, o de que o
teu nome apareceu em rodapés informativos e num insólito mas não surpreendente
alinhamento de notícias, nos jornais e nas TVs, que claramente trocou a partida
de “um cidadão de primeira” por uma “história de segunda”, como alguém
judiciosamente disse. História manifestamente conspícua passada nos Estados
Unidos, envolvendo dois portugueses, de problemática relevância, e um homicídio.
-Outro, o de que
alguém descobriu, depois de afanosas e pelos vistos muito precisas diligências,
que 46% dos portugueses acham que vivem pior do que há 40 anos !...Solene
topetada, como talvez o Eça lhe chamasse.
Tenho pena de te
dizer isto, porque sei que querias que no País não houvesse este sentido de
prioridades, esta afasia masoquista, esta ordenação de relevâncias.
Neste mesmo País
e em muitas gentes que não sabem o que te devem.
Meu querido Amigo
Havemos de nos
encontrar de novo
Manel