GUIA,VERRIDE E
TAVEIRO
Ser ferroviário conduzia então a deambulações do agregado familiar por
imperativos profissionais,
inquestionáveis, para sítios por vezes inóspitos ou menos agradáveis. Um filho
de ferroviário sofria inevitavelmente as consequências. E a deambulação também
se verificava com o ferroviário a abrir caminho, transferindo-se, para
aproximar a casa do local de estudos dos filhos.
Na altura estava já há alguns anos na Guia - Oeste,- não longe de
Monte Real para ser mais facilmente localizável,- depois de ter passado por
Monte Novo de Palma, de extensos arrozais circundantes e ainda não
desinfestados, onde tive a oportunidade de apanhar a minha primeira dose de
“sezões” que as estadias nas plagas africanas haviam de fazer recapitular na
versão mais erudita de paludismo ou malária.
No entretanto, fui crescendo com umas sonecas na tarimba que o meu pai
tinha na estação; com as deslocações em triciclo natalício propulsionado por
ele com uma vara bifurcada na ponta, quando do seu regresso a casa; toureando
com a bandeira vermelha do chefe da estação o Pinóquio -que era um bode mascote
e acompanhante como um cão - do Sr Raul Tomé Feteira, administrador da fábrica
de vidro da família que ali existia e era o principal empregador; aprendendo a
dactilografar nas máquinas HCESAR do escritório da fábrica; visitando o Chico
Limador que na serração do Sr Serra afiava os dentes das serras – digo assim de
propósito – onde eu apreciava a pirotecnia resultante, etc.
Criando amigos, especialmente adultos e brincando pouco. Amigos que
haveriam de me aparecer em Lisboa, uns bons anos mais tarde, voltando a
oferecer-me, como na altura, bengalas, malhas e pisa papéis em vidro, agora com
o meu nome e funções escritos lá
dentro. E a pedir-me ajuda para que houvesse água corrente na Guia-Estação, o
que se conseguiu de maneira simplista pondo a funcionar ali um mini-fontanário.
A fábrica de vidro tinha, honra lhe seja feita, um bairro operário e
durante tempos vivemos numa dessas casas.
Esta Guia – Estação era um grupo habitacional centrado na estação de caminho-de-ferro
como o nome indica, na fábrica de vidro e na serração, afastado mais de um
quilómetro do núcleo principal situado sobre a estrada nacional. Aqui, estava a
Escola com as outras estruturas normais para a época: comércio, farmácia,
igreja e alguma indústria relacionada com os pinheiros que povoavam aquelas
terras em sequela do plantio estimulado por El-Rei D.Diniz - mesmo na ausência
dos subsídios europeus - e ajudavam há séculos a conter o avanço das dunas que
não estavam longe. Não havia abastecimento público de água (como se infere atrás) ou luz
nem, evidentemente, saneamento básico. As tabernas abundavam numa e noutra das
partes.
Fui para a escola, lá em cima, em 1941, onde me esperava o saudoso
professor Roldão e mais uns trinta candidatos masculinos à literacia. Por
questão económica, ecuménica e didáctica habitual na época, as quatro classes
estavam juntas, com efectivos que iam diminuindo com a subida de classe. O número de analfabetos ou iletrados aumentava cá fora. Na parede da frente, um crucifixo e as fotografias do Senhor
Presidente da República e do Senhor Presidente do Conselho; na do lado direito,
mapas diversos sendo que um, destacado, era da Europa com as “nossas possessões“
em cima, demonstrando comparativamente a vastidão do nosso “Império”; na da
esquerda havia as janelas sobre a estrada nacional que pouco ruido trazia à
concentração dos estudos. Não havia espaço de recreio.
Levávamos o almoço num cestinho, aos sábados tratávamos da limpeza da sala e atestávamos de água o depósito de zinco que ali havia com as bilhas de barro que íamos encher numa nascente de água salobra que a Mãe Natureza generosamente colocou à nossa disposição num pinhal próximo. E nós agradecíamos nos dias quentes a Sua infinita bondade.
Levávamos o almoço num cestinho, aos sábados tratávamos da limpeza da sala e atestávamos de água o depósito de zinco que ali havia com as bilhas de barro que íamos encher numa nascente de água salobra que a Mãe Natureza generosamente colocou à nossa disposição num pinhal próximo. E nós agradecíamos nos dias quentes a Sua infinita bondade.
Tinha um companheiro na deslocação diária para a escola, o Fernando
que, de calções de cotim no inverno frio que pintava com o branco da geada a
carrasca que encontrávamos no caminho, competia comigo a atravessar poças de
água: eu com o luxo de uns botins de borracha e ele descalço, rindo os dois
igualmente com os efeitos obtidos. Não despertei na altura para a incongruência entre aquele tal mapa e
estas situações de precariedade.
O professor Roldão regia com maestria e aspereza aqueles quatro
naipes. Lembro-me de ter chorado ao vê-lo bater com a vara de três palmos de
bambu nos calções enregelados do Fernando que, chamado ao quadro, errou na
aritmética. Lembro-me também de, acorrendo todos às janelas para ver passar uma
coluna militar com blindados e tudo,- sabíamos da guerra que se fazia lá fora -
debruçando-se demasiado, se lhe ter
soltado o chinó que usava e dos nossos risos ultra contidos, como é de calcular.
O “velho” professor não tinha as “cãs e barba branca” de “O Soldado Alsaciano”
e tinha a cana da India.
(Quando do exame de admissão ao liceu ele pediu-me que lhe desse
notícias da minha progressão académica… Visitei-o depois, e a estas paragens,
variadas vezes, incluindo a terrestre viagem de núpcias e um passeio já com o
meu filho nascido há pouco e a dormir no assento traseiro. Para nos mostrarmos.)
Uns tempos atrás fui assistir, pela primeira vez, no armazém de um
comerciante local, à exibição de um filme que me impressionou vivamente. O
empresário de um cinema ambulante deslocava-se de terra em terra com o seu
gerador, máquina de projectar e um lençol grande para servir de pantalha;
descrevia em voz alta o que se estava a passar e lia para a assistência,
maioritariamente analfabeta, os textos intercalares projectados, sobrepondo-se ao
pasmo assombrado e geral perante as imagens que eram vistas por olhos
assustados. Recordo-me que os “bandidos” tinham um esconderijo numa gruta escavada
no flanco de um poço (bem visto!...); que o “rapaz” conseguiu libertar a “rapariga
“e meter-se com ela num avião que veio a pilotar, livrando-se em voo de um
malandro e rival que também conseguiu embarcar. Isto, com algumas acrobacias de
que resultou este último soltar-se e vir a estatelar-se no mar que sobrevoavam,
com aplauso geral do público. Este mesmo generoso e colaborante público que
soltava gritos de aviso para o piloto e que se sentia recompensado do dinheiro
gasto com a justiça que assim era feita. Senti, e não só eu, a dificuldade em entender como é que havia gente
que se dispunha a ser actor por uma só vez, ficando logo em cacos. Sim, porque
aquilo eram fotografias do homem e dele a cair e havia exemplos lá em casa onde
se via bem o relacionamento sempre directo da fotografia com o seu objecto…
Cheguei à escola sabendo já ler e escrever razoavelmente, o que permitiu ir adiantando nas matéria curriculares de modo a, na
terceira classe, frequentar já aulas da quarta e nesta preparar-me para o exame
de admissão ao liceu que vim a fazer em Leiria, no velho Rodrigues Lobo, com
êxito que atinge a minha modéstia.”Oh Braz, és um fera” disse-me um dos examinadores no final e o “velho” Roldão
registou, depois de eu ter respondido a uma pergunta que implicava como
resposta correcta e pelos vistos pouco esperada o “nome predicativo do sujeito”,
perante os acenos afirmativos do júri. Agora já não sei o que é, mas o episódio
faz-me lembrar também o Vasco Santana, as tias e o …esternocleidomastoideu. No ano seguinte seria ali meu professor, com agrado de ambos.
Usava capa e batina, que os meus pais extremosamente me compraram. Era
o único – pelo que fiquei na memória de colegas meus que vim a reencontrar mais
tarde e na montra do fotógrafo, no Centro da cidade, onde permaneceu por largos
tempos, recordando-me pequenito, com ar de seminarista estranhamente com um
catrimpázio de Ciências debaixo do braço em vez da Bíblia. Teria a sua piada e os
meus colegas do terceiro ano tentaram frustradamente levar-me como “mascote” numa
excursão de fim de ano não sei aonde, o que a minha mãe não consentiu. Entre
eles o meu querido e saudoso amigo José Varatojo, futuro engenheiro,
reencontrado em Coimbra e bom companheiro por muitos anos de almoços e dores de
cabeça de ambos em Lisboa.
Além de que andava sempre economicamente “bem vestido”, o que era uma
das vantagens da indumentária tradicional estudantil…
Vivia com a minha mãe num “quarto com serventia de sala e cozinha” no
primeiro andar de um prédio ao lado do liceu, que me permitia sair de casa
quando tocava a sineta de chamada, escorregando pelo corrimão, como fazia à
noite quando a fanfarra do Regimento de Infantaria 7, quase em frente, tocava a
recolher e depois desfilava. Gostava do espectáculo, do som e do ritmo. Penso
que esse gosto teve efeitos na escolha profissional.
Mereci ali a minha primeira das duas negativas que tive na vida
académica: um 9 a
desenho no primeiro período, de que me vinguei sete anos depois, em Coimbra,
com 19,2 no exame do 7º ano da mesma disciplina, pelos vistos de classificação
muito minuciosa. Gostei da vingança porque me lembrava de então ter chorado que
me fartei. Por causa de um guache mal aplicado.
No ano seguinte já viria a estar no Liceu da Figueira da Foz e o meu
pai colocado em Verride - perto de Alfarelos, em acomodação de interesses e
conveniências: o meu pai procurava diligentemente aproximar-se de Coimbra, por
minha causa.
Os dias passaram a começar de madrugada e o comboio a ser o meio de
transporte principal e obviamente indispensável, para vários que éramos em
circunstâncias análogas.
Pasta de um lado e lancheira do outro, palmilhava-se alegremente a
distância ainda apreciável que separava a estação do Liceu; o regresso era um
poucochinho mais fácil por ser a descer e a lancheira vir, apesar de tudo,
ligeiramente mais leve, depois de consumido o repasto que continha sobre a mesa
de ping-pong, na sala que lhe estava destinada, e onde instalava a lamparina
desmontável e a álcool desnaturado para aquecimento da sopa e do bife ou guisado.
Tudo se processava com substancial desembaraço, e iniciava-se a digestão com
uma partida a pares ou a singulares na mira dos vinte e um pontos da vitória e
para que a mesa recuperasse a sua respeitabilidade funcional.
Eu e o meu pai estabelecemos um acordo pavloviano: por cada muito-bom
uma ida ao cinema. Funcionou em várias matinés de domingo no Cine-Parque na
Figueira da Foz. A preços acessíveis.
Na altura, o mar na Figueira não estava longe do paredão da “Avenida
da torre do relógio”, chegando no inverno a chocar ali com violência, levando a
areia e deixando suspensa a escadaria de acesso à praia. As ondas batiam então nas rochas do Forte de Santa Catarina formando
um chuveiro que aproveitávamos, eu e os meus companheiros habituais Ramiro e Figueiredo, instalados num dos patamares
circundantes, para um banho refrescante em tardes de calmaria, antes do
regresso a casa.
Verride fica no cimo de um monte, enquanto cá em baixo corre, lá longe,
o Mondego, junto à Ereira e a Montemor-o-Velho; mesmo nas traseiras da minha
casa passava a linha de caminho de ferro e, um pouco adiante, um dos afluentes
– o Anços - . Tive de afastar dos sobressaltos das primeiras noites a ideia de que o
comboio atravessava a casa.
Continuaram os candeeiros a petróleo, mas houve melhorias no
saneamento básico.
Lá em cima passava a estrada nacional, havia electricidade, um clube
com um rádio, uma mesa de ping-pong e vários amigos, todos disponibilizando as
suas potencialidades aos domingos, sendo que o que era exigido ao rádio era o
fornecimento dos relatos de futebol ao encontro das nossas ansiedades
clubistas.
Para usufruir destes bens, no entanto, era-me necessário subir uma
vereda na íngreme encosta, também córrego em dias de chuva, o que uma vez me conduziu
a uma situação muito curiosa. Essas caminhadas, eram feitas por uma via
bastante mais curta que a estrada de ligação normal, quase a corta - mato, aberta
afastando pedras e pedregulhos com os quais, e os retirados das terras
contíguas para cultivo, foram feitos os
muros que a ladeavam. Uma vez, julguei ver uma forma singular num desses
pedregulhos. Atirado violentamente ao chão, abriu-se em dois exemplares
perfeitíssimos de moldes de um fóssil marinho, animal de muito apreciável
dimensão.
Tinha feito uma descoberta interessantíssima que me levou, e a dois
amigos, a quase desmontar os muros à procura de outros parentes e, com a ajuda
profissional do meu pai, a fazer a sua expedição para o Liceu de Coimbra, na
altura chamado de D. João III e que entretanto tinha passado a frequentar.
Entregues ao sector de Ciências Naturais, foram ali classificados e expostos
para honra da História e da Ciência, demonstrando que o mar tinha andado pelos
locais de origem, a umas boas dezenas de metros de altitude, ou uma convulsão
tectónica tinha levado fundos marinhos até àquele patamar. Francamente não me
recordo das conclusões, se as houve na altura.
Dado que no Liceu da Figueira apenas eram leccionados os três
primeiros anos, tive de mudar de novo, desta vez para Taveiro, para estudar em
Coimbra, como já referi. Isto aconteceu exactamente no ano em que deixou de fazer-se exame de
1º ciclo no 3ºano passando para o 2º, já ultrapassado, vindo a confrontar-me
mais tarde com a experiência de um exame, no 5º ano.
Entretanto o meu pai foi precursor naquela planície mondeguina de uma
coisa que nunca ali tinha sido vista: a cultura de tomate de forma um tanto
extensiva para a zona (sete hectares…), habituada a ver arroz ou milho. De
certo modo correspondendo a um convite dos gestores de uma fábrica de massa de
tomate, nova, instalada em Taveiro com a tecnologia italiana imperante na
altura. Já se conheciam por o meu pai fazer a mesma cultura anos antes no campo
da Golegã, no seu esforço permanente para arredondar a conta bancária que o seu
vencimento pouco guarnecia, e na baixa do Mondego não estar suficientemente
desenvolvida a cultura da matéria-prima para o abastecimento razoável da
fábrica.
Era assim que durante boa parte do ano pouco dormia após as suas doze
horas de serviço, das quais só duas eram extraordinárias e pagas como tal
“porque a CP estava em dificuldades”e o “esforço” era compulsivamente repartido
entre o empregado e, alegadamente, a empresa.
Em Agosto, mês central da colheita, fui uns dias para Monte Real com
os meus avós e depois para Pombalinho. Na altura, as estações da CP, pelo uso
do telefone, trabalhavam também como via para telegramas endereçados a
povoações vizinhas que serviam e que um funcionário iria entregar ao
destinatário.
Por este modo recebi a comunicação de que o meu pai tivera um acidente
e era sugerido o meu regresso a casa, onde o vim encontrar com uma perna
partida e um traumatismo craniano, ambos com substancial gravidade mas de
vértice já ultrapassado. Foi um choque para mim e um segundo factor de decisão para opções
profissionais. Em boa verdade aí terei decidido o que viria a pôr em prática três
anos depois: haveria de encurtar o tempo de certo modo imperativo de esforços
financeiros originados por mim que o levavam àquelas actividades
extra-profissionais. Sempre, em todas as circunstâncias, com o silencioso
amparo e cuidados da minha mãe. É que a situação resultara de um acidente em que adormecera ao lado do
motorista da camioneta de transporte de tomate em regresso de Taveiro que, por
contágio, também adormeceu na estrada em talude e embateu com violência num dos
choupos que a ladeavam mas que teve a
bonita atitude de evitar que a viatura rebolasse pela encosta, com efeitos
seguramente mais gravosos.
Mas estes foram, para mim, decisivos.
Manuel da Costa
Braz
In m/ pasta Para
Memória Futura
Editado em Nov
2018