24 julho 2010

Carta a um Amigo!



Esta "carta" foi publicada no Boletim da Associação 25 de Abril nº100 que além de comemorativo pelo seu número redondo foi essencialmente dedicado a homenagear o Cor Vitor Alves, falecido em 8 de Janeiro de 2011 no Hospital Militar Principal. Por ironia premunitória, a edição do Boletim refere-se ao período de Out-Dez 2010 e a dilação havida na edição permitiu juntar dois eventos relevantes: o número redondo da iniciativa editorial da A25A e a infausta ocorrência do desaparecimento de Vitor Alves.  M. Costa Braz


Meu Caro Vítor


Confesso-te que tenho uma grande dificuldade em escrever-te.
Tenho andado de dia para dia para o fazer e a inércia tem vencido.
Entretanto nota que não o faço por qualquer imperativo circunstancial mas sim porque o afastamento leva a relembrar coisas vividas em comum, sejam elas factos, carácter, temperamento, idiossincrasias, o que for. E passá-las a escrito é interessante, até para reviver. Compreendes bem isso tu que, que eu saiba, não escreveste coisa nenhuma para memória futura, colaborando no entanto e felizmente com outros que o faziam para utilidade pública, como creio bem que virá a verificar-se. Não descurarias o interesse público.

É por isso que recordo como nos conhecemos em Setembro de 1971: quando vim juntar-me ao grupo a que tu pertencias e que se propunha fazer o Curso Complementar de Estado-Maior no IAEM. Coisa um bocado complicada para mim, porque na relatividade já seria um pouco vetusto para alguns colegas nossos. E por força de ser major e o mais antigo, era o chefe de curso. Delicado encargo.

A naturalidade da chefia daquele grupo cabia-te, e eu era o intruso que depressa deixou de o ser pela empatia imediata que soubemos criar e desenvolver. Compreendeste e ajudaste nos problemas que eu trazia comigo pelas contingências da vida e perversidade de alguns homens.

A tua vivacidade de inteligência e temperamento torneavam momentos mais complexos, como o faziam também quando, em temas tácticos, se analisavam acaloradamente as dificuldades do ataque quer pela esquerda, quer pelo centro, quer pela direita, e tu vinhas com a solução  do envolvimento vertical  helitransportado .
-Mas não há helis !
-Pedem-se de reforço ao Corpo de Exército!
Dificuldades ? Hão-de superar-se. O que é preciso é imaginação !

Viemos a viver vitórias e frustrações ao longo do curso: como era preciso que nas obrigatórias orais dos exames finais houvesse pelo menos um espectador na sala, pediste-me que te acompanhasse. Assim fiz. E retribuíste.
Quando, com sugestão do Firmino Miguel, coloquei à ”turma” a questão do Congresso dos Combatentes que se anunciava - temática inusitada na ambiência clássica e tradicional daquela Escola - foste dos mais entusiastas e desassombrados na contestação que transmiti ao Director de Curso.

Findo o cansaço e as férias de 1973, fomos para o EME, tu na 4ª Rep com o Sanches Osório e eu na 3ª com o Rebelo Gonçalves.
Disseste-me em Dezembro, em segredo, da tua simpatia pela movimentação que se verificava entre os capitães.
O Osório e tu levaram-me a juntar-me ao grupo para mim agora mais visível em 5 de Fevereiro seguinte, onde te vi, voluntariosamente, na mesa da Comissão Coordenadora do que já era um Movimento de dimensão manifestamente alargada.
Ponderada e silenciosamente, quase sem se dar por isso, dirigias a reunião, de que aliás saí com uma incumbência. Que cumpri.

E aceleraste a vida de dobadoira que já vinhas adoptando.

Mas entretanto e cumulativamente, numa perspectiva de enorme discernimento que poucas vezes é referido e para mim constituiu um contributo inestimável para o triunfo, cirandaste com afabilidade, cortesia e convincentemente pelos outros Ramos procurando a sua adesão ou a neutralidade. E, com alguns colaboradores, conseguiste. E digo assim, porque a tarefa principal foi tua e da tua maneira de ser e estar.

Nas actividades preparatórias logo se manifestaram resultados na elaboração do “Documento de Cascais”, onde ajudaste sabiamente a ultrapassar as dificuldades e hesitações que surgiram na reunião que ali teve lugar em 5 de Março. E que foi, chamemos-lhe assim, o momento chave e decisivo para o que se processaria a seguir. Constituíste o que poderá chamar-se de “núcleo político”, com centro no Ernesto e de que fiz parte e que viria a pensar, ponderar e produzir o Programa do MFA, onde aquele teu trabalho de procura de convergências voltou a ter relevante utilização e bons resultados não só no imediato como no futuro.

Entretanto o Tejo corria célere debaixo da ponte, com algumas precipitações. O tempo urgia.
Paralelamente corria o excelente planeamento operacional, como por mim vim a verificar.

A escada que conduzia ao bar do EME para o café da tarde era local de troca de rápidas e sigilosas opiniões sobre as evoluções que entretanto se verificavam, o lugar de destino para os então Chefes da Nação ou o nível dos componentes futura da Junta de Salvação Nacional.
Era o teu bom senso a imperar sobre ímpetos entusiásticos e o conhecimento e prudente respeito pelas idiossincrasias individuais e do grupo profissional a que pertencíamos.

Bem cedo na manhã de 25 de Abril fui ao teu encontro na 4ª Rep onde, com o Charais e o Zé Osório, sorviam sofregamente as notícias que as rádios iam transmitindo.
Já noite dentro, findas as minhas tarefas, fui encontrar-te na Pontinha, onde afinal não cheguei a render-te como tínhamos combinado, porque ali ficaste também nas negociações do Programa com Spínola e Costa Gomes e de onde se saiu a caminho da RTP com os membros da Junta.







Poucos sabem que ali tiveste de ler para os sôfregos e ansiosos jornalistas as partes essenciais e consensualizadas do Programa, por carência de tempo e de meios de cópia rápida para um bom aspecto gráfico.
O País ficou então a conhecer-te.

Mas a tua inquietação e movimento não pararam, com ou sem funções governativas.

Lá veio o “Verão Quente” como foi definitivamente baptizado e fomos, os dois, “refugiar-nos” no MNE com a pomposa designação de “embaixadores dos Serviços Externos”  -  embaixadores itinerantes - . 
Ambos nos desincumbimos de tarefas no exterior a partir do nosso gabinete lá ao fundo do corredor, eu no Uganda e em Moçambique e tu em Timor e algures na Europa, mas tu, com vantagem não deixaste de exercer a tua actividade, afinal e plenamente no uso das qualidades requeridas para a função, no interior, em todos os desenvolvimentos em muitos dos quais participei em ligação contigo e que culminaram em 25 de Novembro, com o “Documento dos Nove” de permeio mais as reuniões no sótão do Gomes Mota e os almoços no primeiro andar do Restaurante O Chocalho, em Santos, com admissão exclusiva e direito de acesso que  foi  reservado para nós.
De novo o bom senso, equilíbrio, inteligência e ponderação postos à prova com êxito.

Espaçaram-se depois os contactos, que os afazeres diferenciados também de certo modo impuseram, mas uma regra saudável estabelecemos por essa altura : a de almoçarmos os dois pelo menos nos dias 25 de Abril, após as cerimónias comemorativas na AR, depois do que eu te acompanhava à Avenida da Liberdade que ias descer num grupo numeroso e plural. Para além de outras oportunidades que surgissem.
Assim fizemos até há dois anos.
Coisa que estávamos a reavivar agora como ocasiões que aproveitávamos para saber de nós e para rever a matéria passada e a previsível para o futuro, que sempre te  preocupou.

Normalmente parco em palavras, gostavas mais de ouvir.

Acompanhavas de perto o evoluir da vida política e as nossas ocupações, como disse,  deixaram de ter alguns pontos de sobreposição, no tempo ou na matéria.
Foi assim que, em 1979, estando eu no Songo, em Moçambique, isolado do mundo e das notícias ou quase, dadas as enormes dificuldades de comunicações, recebi, bastante espaçados nas horas dois faxes convidando-me para integrar o V Governo Constitucional. Eu não fazia ideia do que por cá ia entretanto acontecendo. Declinei os convites até que recebi um terceiro fax que continha um quase lacónico “Imprescindível que aceites”  assinado “Vítor Alves”.
Comunicação suficiente.
O conceito era teu ou vosso, como quiseres. A imodéstia da citação é minha.
A fonte da informação relevante para a decisão era fidedigna e a confiança era total e mais que uma vez demonstradamente merecida.

E pus-me a caminho de Lisboa onde cheguei uns dois dias depois ao romper da alva. Esperava-me no aeroporto o carro com um amigo informado sobre as águas corridas para um briefing sintético e, passado pouco tempo, estava no forte de Catalazete a falar com a Maria de Lurdes Pintasilgo ocupada na azáfama de organizar a sua equipa governativa e manifestou o seu agrado e mesmo alívio, se me é permitido assim dizer.

Sei que tiveste gostos e desagrados. Como toda a gente, é certo. Não porque os confessasses, mas porque te conhecia suficientemente bem.

Sei que gostaste do encargo que recebeste de, durante talvez dez anos, presidir à Comissão Nacional para as Comemorações do dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.
É que aí juntavas o útil ao agradável. Agradável, porque declaradamente gostavas de viajar. Útil, muito útil mesmo, porque te empenhavas devotadamente em explicar e esclarecer a nossa diáspora sobre o que fora e era o nosso Abril e os horizontes esperados para um novo seu País.


Sei que tiveste pena que o PRD, que ajudaste a criar, não tivesse conseguido uma coisa que ambicionavas: ser deputado europeu.
 Nunca te o perguntei porque não precisava. Também não te vi ou ouvi manifestações de desgosto ou de recriminação. Muito menos queixumes. Mas podes confessar agora, despindo a veste folgazã que por vezes utilizavas e eu te convidava a tirar para seres mais real. Ao que tu acedias.

Lamentei que assim tivesse acontecido, porque achava que a função se te ajustava bem e farias um bom lugar no interesse do País.

Amigo do teu amigo, recordo duas situações, para não referir uma terceira que me disse respeito:
-Como choravas quando ambos e outros quatro amigos levávamos o Ernesto para a sua última viagem;
-Como acompanhaste dedicadamente o Mário de Aguiar, ao ponto de me agradeceres o simples facto de eu o ter ido visitar ao Hospital, ultrapassando uma estúpida tensão de relações que afinal custava a ambos.

Em certa altura resolveste recolher-te, sem perder o contacto com o mundo e as suas circunstâncias.
Dedicaste-te mais à família e descendência e às causas cívicas, sendo um motor e impulsionador da criação da Civitas, composta por pessoas das mais variadas origens e convicções como tu gostavas e a causa exigia, altamente meritória no campo social, da cultura e dos direitos humanos em que comungavam e a que presidiste.

Amigo dedicado e fiel, tiveste-os também, asseguro-te. Tal como detractores, também te asseguro, mas não sei se inimigos. Despeitos em gente menor que a eles não resistiam sim, e também deles sofreste os resultados. Mas pareceu-me que a tua caravana sempre passou, soberanamente indiferente aos latidos, como devia. Assim o soubeste querer, assim o soubeste fazer.
E coisa interessante e rara : nunca te vi como maledicente nem maleficente, não sendo tu, manifestamente, santo ou candidato a beatificação. Mais relevante ainda porque a tua personalidade era forte e assim nos ficou na memória.

De novidades que para ti efectivamente o sejam, nada de especial que não tenhas já e lamentavelmente conhecido noutras oportunidades.
Talvez dois pequenos episódios:
-Um, o de que o teu nome apareceu em rodapés informativos e num insólito mas não surpreendente alinhamento de notícias, nos jornais e nas TVs, que claramente trocou a partida de “um cidadão de primeira” por uma “história de segunda”, como alguém judiciosamente disse. História manifestamente conspícua passada nos Estados Unidos, envolvendo dois portugueses, de problemática relevância, e um homicídio.
-Outro, o de que alguém descobriu, depois de afanosas e pelos vistos muito precisas diligências, que 46% dos portugueses acham que vivem pior do que há 40 anos !...Solene topetada, como talvez o Eça lhe chamasse.

Tenho pena de te dizer isto, porque sei que querias que no País não houvesse este sentido de prioridades, esta afasia masoquista, esta ordenação de relevâncias.

Neste mesmo País e em muitas gentes que não sabem o que te devem.



Meu querido Amigo
Havemos de nos encontrar de novo

Manel



Algés,16 de Janeiro de 2011